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"Excomungada" de Negrelos (São Tomé)

O adjetivo feminino singular que qualifica esta notícia não foi por mim escolhido ao acaso, obviamente! Eu explico: muito sucintamente, pretendo com ele identificar um edifício, classificar uma cerimónia e avaliar um discurso. Recordo-me de um aforismo popular que diz que “o que torto nasce, tarde ou nunca se endireita”. E era nesse mesmo provérbio que amiúde meditava enquanto atónito ouvia o discurso do pároco da freguesia proferido a 13 de setembro último para uma plateia de uma centena e meia de pessoas já com alguma idade e que maioritariamente acabava de sair da missa ali ao lado. Não havia dúvidas: estávamos diante de uma dissertação estridente proferida em tom apenas audível por si meticulosamente elaborada para o efeito. Eloquente, se quiserem. Bastante eloquente! Tão eloquente que a casa mortuária que ali ao final da tarde se inaugurava com “pompa e circunstância” parecia deveras amaldiçoada. Entre palmas e alguns apupos, o padre António Ferreira denotava sapiência na missão que conduzia, embora por momentos até eu chegasse a pensar que este orador se tinha esquecido da verídica razão do seu discurso. Mas nunca desprezando o “povo unido de São Tomé”. Bem pelo contrário. Começou por o parabenizar. Teve-o sempre bem presente nas suas palavras, fundamentalmente para o louvar desde logo por ter cedido gratuitamente o terreno para a construção daquele novel empreendimento que naquele momento abria portas. O pároco de São Tomé de Negrelos não se inibiu de referir perante o olhar dos presidentes da câmara e da freguesia que estávamos diante de uma população “cronicamente esquecida e passada para trás”, “que agora está a pagar caro o direito de ter um lugar onde honrar os seus mortos”. O sarcasmo evidente no discurso do padre António Ferreira parecia a partir daqui alvejar tudo e todos, excetuando naturalmente a população local pelo atrás exposto…, e o resto, que está bom de ver. E prosseguiu, referindo-se agora especificamente ao quinhão mais estrutural do edifício ali instalado: “o seu conjunto é um colossal monumento, um poema sinfónico, uma epopeia à incompetência e à arrogante pesporrência de sujeitinhos convencidos”, que acusou de infernizarem a vida aos humildes. A esses “sujeitinhos” chamou-lhes “reisotes e reisetes de pacotilha. Desde os génios que geraram o mamarracho até aos crânios que pariram semelhante aborto”. E como “contado ninguém acredita”, sugeriu uma “visita guiada e documentada” ao edifício que acabara de qualificar. Ora bem: eu, Augusto Pimenta, jornalista e autor destas linhas, garanto-vos que não sou supersticioso. De todo! Mas começava agora a relacionar com este discurso o dia do mês em que foi proferido. Cumpre-me aqui confessar-vos, caros leitores, que em mais de duas décadas e meia de profissão, não tenho memória de ter assistido num ambiente tão tenso a uma inauguração de um destes edifícios que a custo se vão construindo pelo concelho. As palavras deste pároco iam abrindo de espanto a boca dos que as ouviam. Reparem, prosseguindo, o padre António Ferreira citou

depois “o Livro dos Provérbios – capítulo dos provérbios, versículo 11” para dizer que “como o cão volta ao seu vómito, o tolo volta às suas tolérias”. E, atribuindo-lhe uma sonoridade singular, repetiu a expressão na língua de Charles de Gaulle. Para o padre António Ferreira, “é imperioso e urgente alertar o nosso bom povo para que não se deixe comer. É provável que algumas pessoas ainda não tenham dado conta das manobras dos mabecos raivosos carniceiros que andam por aí na mira de mercenários caninos a estraçalhar a boa harmonia na comunidade para abocanhar a posta maior”. Ora bem, nesta altura, confesso, começava a perceber muito pouco desta rábula. O autor apelidou-a de “versalhada”. Talvez estivesse aqui a resposta à minha pergunta. Versalhada? Para concluir: “os mortos apontam em frente o caminho da esperança que resta”, disse o pároco já mesmo no fim da sua intervenção. Também eu vou agora seguir em frente, que se faz tarde! Para que se saiba: a obra de que falamos envolveu a construção de raiz do edifício da casa mortuária de Negrelos (São Tomé), constituída por um alpendre exterior, antecâmara de receção e duas câmaras (assim se chamam as salas onde repousam os mortos antes de descerem à terra). Na antecâmara, que se abre sobre o jardim, é feita a receção das pessoas, que assim ficam protegidas do ambiente exterior, sem que estejam nas câmaras. Neste espaço foram construídas duas claraboias, que marcam com luz as entradas nas duas salas, cujo efeito procura dar um sentido de verticalidade acentuador do momento de despedida. Já as câmaras propõem um espaço dinâmico que se divide e liga através de uma divisória em madeira. A cobertura “desloca-se” das paredes e gera uma fresta horizontal que dimensiona o espaço, provocando a noção de que a cobertura está a “levitar”. O prolongamento das duas salas é ampliado pela existência do jardim exterior. O investimento feito pela câmara de Santo Tirso implicou ainda a construção de uma garagem para a residência paroquial, ligadas por um pequeno hall coberto.

O senhor que se seguiu nas dissertações foi Roberto Figueiredo, o presidente socialista da junta de freguesia local. Tal como o pároco que acabara de falar, também ele se socorreu de um documento para ler o seu curto (neste caso) discurso. Agradeceu a presença de todos, começando naturalmente pelo presidente da autarquia, que ali estava para inaugurar o edifício que custou 150 mil euros aos cofres do município. Agradeceu ainda a Fernando Azevedo – presidente da assembleia de freguesia, aos vereadores que confesso não ter visto, aos restantes autarcas e só depois ao “excelentíssimo” pároco António Ferreira por ali estarem. Dos três palestrantes, Roberto Figueiredo foi o único que não se esqueceu da comunicação social, agradecendo aos seus representantes ali presentes a disponibilidade manifestada. “Sejam todos bem-vindos à inauguração da casa mortuária de São Tomé de Negrelos”, disse então. Acrescentando logo depois que “esta obra representa e concretiza uma das mais legítimas aspirações da nossa freguesia. É o culminar de um longo processo que várias vezes ficou emperrado por caprichos e até devaneios de diversas origens atrasando vários anos o tão aguardado equipamento que hoje inauguramos e ao qual o povo de São Tomé de Negrelos tinha direito”. Para o autarca de Negrelos (São Tomé), a junta de freguesia que dirige pode honrar-se de contribuir para colmatar algumas lacunas de última hora, referindo-se à casa mortuária que ali se inaugurava. “È a prova que a união faz a força, ao contrário da desunião a que muitas vezes ao longo deste processo tivemos a infelicidade de assistir, exibida de forma nada correta”. Posso afiançar-vos, prosseguiu o autarca, que ao longo deste processo “muitas mentiras e intrigas foram semeadas”. Não havia dúvida: a obra edificada parecia de novo estar mesmo amaldiçoada. “Oxalá representem apenas cenas do passado, para esquecer”, acrescentou Roberto Figueiredo, “pois a inauguração deste espaço é a prova mais que certa que tudo é possível com boa vontade e união. A casa mortuária que hoje inauguramos só foi possível com acordo entre a câmara municipal de Santo Tirso e a diocese do Porto, vencendo todos os obstáculos que foram sendo colocados ao longo este sinuoso caminho”. Depois de agradecer “ao excelentíssimo” presidente da câmara, o autarca de Negrelos (São Tomé) cedeu-lhe o púlpito, para o derradeiro discurso da tarde, o único dos três proferido sem cábula. “Tenho dito”, disse Roberto Figueiredo antes de abandonar a tribuna. Joaquim Couto, por sua vez, cumprimentou os presentes e elogiou de imediato o trabalho do seu precedente nos discursos “que, pelas suas palavras e pelo exercício de presidente da junta desta freguesia, já deu mostras de que São Tomé de Negrelos tem um grande homem, um grande político, um grande autarca para defesa dos seus interesses e para promover o desenvolvimento da freguesia em colaboração com todos aqueles que queiram colaborar com ele.” Joaquim Couto prometeu a Roberto Figueiredo “toda a colaboração” e garantiu aos presentes que estará sempre disponível para com ele ajudar a resolver os problemas da freguesia”. Depois de cumprimentar os órgãos autárquicos ali representados, o presidente da câmara de Santo Tirso saudou o pároco António Ferreira e elogiou muito o seu discurso, apelidando-o de “uma alocução excelente, espetacular, de uma grande sabedoria, de um grande alcance político e até religioso”, pronunciando-se depois apenas sobre a vertente política da dissertação do pároco. “E é para mim senhor padre, num ato muito agradável saber que há ainda pessoas com o caráter e com a tenacidade que aqui demonstrou mesmo que cada um de nós possa não concordar com tudo. Mas é isso que qualifica e constrói a democracia com as pessoas a dizer aquilo que pensam, a colaborar na procura dos consensos necessários a nível político”, disse Joaquim Couto. Depois, admitiu que “tem uma responsabilidade diminuta nesta obra por circunstância de horário, por circunstância de tempo. As eleições foram o ano passado – recordou -, a obra está pronta e cabe-me a mim inaugurar esta casa mortuária. Sei das vicissitudes por que passou todo este processo, sei das dificuldades que houve na obra e procurei sempre atalhar caminho através dos serviços municipais e procurando o diálogo e procurando o consenso para que hoje pudéssemos inaugurar esta casa mortuária”. Depois de, para uma plateia constituída maioritariamente por pessoas já com alguma idade, “dizer duas ou três palavras” sobre o momento que atravessamos, referindo-se por exemplo à cerimónia de onde vinha sobre o orçamento participativo jovem realizada nos paços do concelho, Joaquim Couto terminou o seu discurso convidando as pessoas a visitar a nova casa mortuária. Entretanto do público alguém gritou: “vai-te embora! Estiveste aqui vinte anos e não fizeste nada!”. E eu fui, não sem antes visitar o “mamarracho”, trocar umas prosas em privado com o “excelentíssimo” pároco António Ferreira e de me despedir do “povo unido de São Tomé” ainda presente, desejando-lhes nunca os reencontrar “na horizontal” no interior daquela “epopeia à incompetência” que acabava de ser inaugurada! “Tenho dito”!

 

Augusto Pimenta

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